30 de nov. de 2013

MÃOS EM ORAÇÃO


Esse sertanejo está diante do túmulo do Padre Cícero no Juazeiro (veja outras fotos da nossa excursão por aqui) e a sua oração solitária e silenciosa quase me levou às lágrimas dia desses. Lembrou do meu avô na fazenda, que saía do banco do alpendre quando a imensidão do crepúsculo espraiava-se no horizonte: ele vinha pra junto do rádio ouvir a “Ave-Maria” às seis horas, ajoelhava-se de braços abertos e parecia tomado em transe por um sentimento oceânico - mesmo sem nunca ter visto o mar. Lembrou também de tudo que já estudei comparando as religiões: mesmo se destinando a figuras intermediárias, como Nossa Senhora e os santos, na prece cristã, mesmo não tendo um interlocutor e se dirigindo a um vago ponto de referência, como no budismo, toda religião tem por detrás da oração uma referência à - e experiência da - Realidade suprema, que pode ser pessoal ou impessoal. 

A oração é um fenômeno universal, uma voz dos mesmos sentimentos humanos de criatura, ainda que com modulações diferenciadas: "Há uma sinceridade na oração expressa pelas religiões que deveria vencer todas as cercas da divisão e das contestações entre as religiões: quem observou o muçulmano de joelhos na mesquita fazer as suas prostrações, sem prestar atenção a tudo que o cerca; quem viu um hindu entrar no templo, tirar antes disso o sapato, tocar a campainha na entrada e depois ir até o altar para um pequeno sacrifício às divindades não pode duvidar que a alma das religiões é exatamente esse ato de rezar, que possui algo excepcional, algo maravilhoso. As doutrinas religiosas podem dividir os homens, porém a oração os une sempre, pois na oração não é mais uma doutrina que está sendo debatida e defendida, e sim uma experiência que está sendo vivida em relação ao altíssimo, àquele que não pode ser submetido à medida humana..." (TERRIN, A. Introdução ao estudo comparado das religiões. Paulinas, 2003, p.120).

Quando vejo um homem religioso antigo, como naquele agricultor romeiro do Padre Cícero, sei que ele organiza - e realiza - o seu mundo a partir de um ponto fixo, uma hierofania (o sagrado emerge em meio ao profano e aponta pro divino e permite conexão com ele), que lhe dá o fecundo poder para fundar a realidade: aquele homem cosmogoniza o mundo a partir de pontos de ruptura através dos quais o “mais-que-natural” tenha se manifestado - no caso, através da figura do "Meu Padim", que lhe dá valores e nomes para tudo o mais.

Mas fico me perguntando pelo humano contemporâneo, urbanóide suportado materialmente por invenções mecânicas e digitais, que vive em um mundo globalizado no qual as correntes religiosas viajam e se entrecruzam com toda sorte de comunicação e articulação de sentido: ele assumiu o relativismo da existência e rejeita, quase tanto quanto a pretensão objetivista e tecnicista do conhecimento científico, a linguagem metafísica das subjetividades religiosas. Rejeita a princípio o movimento de transcendência, de um toque divino ou alguma essência humana, apostando num existir sem pontos fixos. Basta-lhe um conjunto de mapas teóricos para vagar por aí, numa realidade fragmentada pela estética do absurdo, como diria Camus, num mundo construído, no máximo, com a ajuda da ficção e do cinema

No entanto, esse suposto apego ao que "é mesmo real" pode ser o começo de uma nova espiritualidade, que ainda estamos por circunscrever. Na sociedade pós-moderna a dimensão religiosa vem por meio de manifestações culturais que transparecem “algo mais” nesse mundo asséptico e cético. Nossa situação é, na verdade, caracterizada pela sensação do irreal e pela procura de um senso novo de realidade. Portanto, pela procura de uma nova religiosidade. Por trás de muita pesquisa terapêutica por saúde, esconde-se a velha busca humana por salvação...

Senti isso na semana passada, discutindo sobre "Espiritualidade no Século XXI" (veja aqui) na Faculdade Messiânica em São Paulo, com agnósticos, muçulmanos e budistas e praticantes das novas religiões orientais. Como estávamos entre os devotos do johrei, oração tradicional pela imposição das mãos, recordei estudos comparados sobre essa forma de rezar (veja por aqui uma dissertação), comentários sobre as variações dos gestos das mãos em oração, em busca da mesma experiência de "ser tocado". Lembrei sobretudo de pesquisa que comprova os benefícios do reiki, despertando o interesse até de médicos e desse povo "pós-religioso" que vai à internet e aos meios de comunicação como meu avô ia ao oratório - e também ao rádio - da sua fazenda no sertão.

Pra completar, abro o facebook hoje (denunciando assim minha própria condição de mochileiro espiritual) e encontro o meu mestre Paulo Suess, teólogo cristão, missionário entre os indígenas, convidando a gente para rezar uma oração deles: 
"Sente-se à beira do amanhecer,
o sol nascerá para você.
Sente-se à beira da noite,
as estrelas brilham para você.
Sente-se à beira do rio, ...
o rouxinol canta para você.
Sente-se à beira do silêncio,
Deus vai falar com você."

Gilbraz.
(post dedicado aos professores de ensino religioso de Roraima,
que estão fazendo estudos intensivos em nosso Mestrado nestes dias)

2 comentários:

  1. salve mestre, bonitta reflexão. vejo muita discussão sobre os detalhes que dividem as religiões e religiosidades, mas pouca gente lembra do que é básico e comum, mesmo nos novos movimentos espirituais: levantar as mãos pro céu!

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  2. Beleza! Se a gente deve cultivar a epistemologia das controvérsias, de vez em quando é bom parar um pouco de desconstruir as rezas dos outros e tentar rezar um bocadinho, né? Feliz Natal pros estudiosos da religião!!!
    Manoel.

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